quarta-feira, 19 de abril de 2017

O PACTO



               Ele olhou o vidro estilhaçado da janela filtrando os raios de sol que lançavam um foco de luz sobre o chão que também já vira dias melhores. A escrivaninha atulhada de papéis e coberta de poeira lhe cobrava os trabalhos que deixaram de ser feitos há muito tempo.

               Não se lembrava exatamente quando as coisas começaram a desandar. O fato é que , quando começava a se animar, achando que tinha chegado ao fundo do poço, algum acontecimento vinha tornar a sua vida ainda pior.

               E pensar que, menos de três anos atrás, sua vida corria muito melhor do que poderia jamais sonhar. Tinha sido editor de uma das mais prestigiadas revista de arte do país. Era sempre requisitado para festas e recepções, onde as pessoas disputavam a sua atenção e ficavam atentas às suas idéias e críticas.

              Sub-repticiamente, como um câncer corroendo um organismo sadio, as coisas começaram a descer ladeira abaixo. Não foi um fato ou acontecimento específico que desencadeou o processo, mas as coisas começaram imperceptivelmente a dar errado, carregando-o para o buraco no qual agora se encontrava.

               Sentado no sofá fitava a poeira que turbilhonava na contraluz quando sentiu a presença dele. Voltou-se lentamente sem se assustar, como se fora uma presença há muito aguardada.

               - É...parece que as coisas não vão indo lá às mil maravilhas, não é mesmo?

              - Bem, eu diria que, há quem viva melhor.

              - Eu posso dar um jeito em tudo, deixando as coisas exatamente como você desejar.

              - Eu sei...mas esse é um preço que não estou disposto a pagar.

              - Tá certo, afinal a vida é sua. Mas qualquer coisa é só me chamar. A qualquer hora, do dia ou da noite. Eu me orgulho de levar o trabalho a sério e funciono 24x365. Dito isso desapareceu sem qualquer ruído.

               Essa foi a primeira vez.

          Ás vezes ele ficava meses sem aparecer. Então, de repente, sem mais nem menos ele se materializava na sua frente.

            - Rapaz, não sei como consegue ficar sem água! Sem luz até dá para entender, mas sem água?!!!

               - O vizinho da frente é gente fina e me deixa tomar um banho de vez em quando, além de fornecer água num balde que deixo para alguma eventualidade. Nem louça eu tenho que lavar, já que como todo dia no Bom Prato.

               - Se você diz...

               - Claro que sim! Mas ele já tinha desaparecido.

               Foi então que ele foi despejado e toda sua vida se resumiu a uma mochila com algumas roupas e alguns livros que ele se recusava a abandonar. Seus dias passaram a ser uma rotina de busca por uma refeição grátis e um lugar seco para dormir.

               - Você é um cara de opinião! Isso ninguém pode lhe negar.

               - Oi. Você sumiu. Tava com saudade...

               - Já ouvi de tudo dos humanos, mas esta é a primeira vez que alguém me diz isso. E o pior é que eu sei que você está sendo sincero.

               - Bem, não tenho nada contra os seres humanos, mas é que com você eu posso ser eu mesmo. Mesmo porque nem adianta tentar mentir para você.

               - Falando nisso, a sua saúde está cada vez mais debilitada. Tente se alimentar melhor e procurar um posto de saúde. Infelizmente não posso te ajudar com isso.

               - Não se preocupe que aqui ainda tem muita lenha prá queimar.

               Como não tinha nada melhor para fazer, no dia seguinte foi num pronto socorro consultar um médico. Diagnosticado com pneumonia aguda foi internado imediatamente, começando a receber medicação e alimentação adequada. O médico porém deixou claro que não havia o que fazer, além de tentar deixá-lo confortável.

               - Você queria falar comigo?

               - Queria bater o martelo no nosso pacto.

               - Mas você tem menos de uma semana de vida! E para isso eu não tenho a solução. O único que já ressuscitou alguém foi o cara lá de cima. Eu só posso mexer nos pauzinhos para as coisas acontecerem enquanto você estiver vivo. E, no seu caso, não vejo vantagem...

               - Eu sei...você sabe que eu tô fudido mas não perco a pose. Então que fique bem claro que é uma escolha consciente, sem que eu leve vantagem alguma.

               - Não estou entendendo...

               - Ora, eu quero a sua companhia para toda a eternidade. Ninguém foi tão fiel e interessante durante toda a minha vida...e, cá entre nós, o céu deve ser chato prá caralho!



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